sábado, 18 de junho de 2016

domingo, 12 de junho de 2016

Marco António III

Ali ficou vendo a luz mudar. Primeiro acariciara os tacos de madeira da entrada da cozinha, depois lentamente como numa valsa desconhecida foi-se deslocando, graciosa, o bar que era de sua avó portuguesa, a livraria magrinha magrinha mas que exibia orgulhosa os clássicos em edições de bolso, a mesa de jantar com suas frutas de plástico, a televisão velha com o seu crochet encardido...sedutora saíra pela janela, escondendo-se num farol de rua, desmaiado e abafado como quem denuncia uma mentira.
Não se pode dizer que pensava sobre a frase do estudante...para pensar fazem falta palavras. Naquele silêncio ele repetia músicas sem parar, como que tomado por um frenesim do passado. As músicas que escutava eram fragmentos da sua infância...o meu chapéu tem três bicos, o jardim da celeste, atirei o pau ao gato, ciranda cirandinha...frases soltas da sua professora primária, da sua avó, do seu avô, frases soltas de ninguém em particular...um padeiro, a peixeira. Fragmentos do passado que como estilhaços de granada feriam algo escondido nele.
Pensou por um momento que pensaria alguém que o encontrasse ali, naquele escuro, naquele silêncio. Imaginou que a pessoa saltaria em sobressalto, que se agitaria e se indignaria com ele por esse comportamento bizarro. As pessoas não gostam de excentricidades. Só para as estrelas lá em Hollywood ou para a Ana Maria Braga. Taxista, no escuro, pensando, não dá. Ninguém chegaria de surpresa acabou por pensar, a diarista vinha só às quintas, e pela forma como ela limpa nem se daria conta se ele estivesse ali, estático de morto ou estático de atormentado.
Porque lhe tinha parecido tão estranho que aquele moço, visivelmente perturbado em sua falta de sono, lhe dissesse que não "pegava" com ele ser taxista?! Acaso "pegar" era coisa que lhe interessasse?! Acaso um jovenzinho intoxicado em café Pilão forte saberia o suficiente das coisas da vida como para se lançar em comentários alheios?
A resposta retornava a mesma...algo que uma verdade tinha sido dito. Uma verdade do afecto, inesperado, gratuito, improvável entre um passageiro e seu condutor.
E essa verdade encontrara-o, por mais cliché que pareça, encontrara-o nu.
Haveria verdade nessa verdade?
Pode-se saber sobre a natureza do outro, assim, num piscar de quilómetros?
Era difícil pensar com um carrossel de músicas antigas latejando os neurônios, aquelas músicas, porque raio se apresentavam agora, ali?
Pensou ver a novela. Malhação? Já passara da hora. Mesmo sem ele, essa tarde conseguiriam visualização recorde. Algo que lhe esvaziasse a cabeça. Que a silenciasse.
Preciso, acendeu a luz, a música e olhou a geladeira.
Não...
Era tema de palavras.
Apagou a música, acendeu outra luz.
Pegou num livro, não lido. Abriu.
"(...)para levar uma vida que, por ser destituída de esperança, tornava-se também uma vida sem qualquer espécie de ressentimento."*
As pombinhas da catrina voaram e a frase ficou ali repetindo-se.

* O primeiro Homem. Albert Camus

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Marco António II

Ajeitada a camisa, o cabelo, o pelo que fugia rebelde por entre o botão da camisa, ele saiu, tilintando chave, assobiando como filme  a preto e branco, ligou o carro, calibrou o ar condicionado e saiu. 
O primeiro cliente era a clássica mãe desesperada: dois filhos, vinte mochilas, o atraso que seria imperdoável hoje, hoje viria seguramente uma notinha para casa...A viagem começou agitada, a criançada falando alto a mãe segurando o choro com as palavras, as mochilas indo de cá para lá. Ele colocou Mozart. A criançada acalmava sempre com o Mozart. Em menos de cinco minutos o silencio se instalara, a mãe abrira finalmente os olhos, tocou-lhe o ombro: obrigada.
O segundo cliente era bem diferente, farialimastyle, executivo, alto, duro. Reclamou que a interpretação do pianista era brega, recomendou outra e saiu bem na frente de uma conhecida casa de massagens.
O terceiro era com certeza estudante, as olheiras, a barba por fazer que dizia baixinho não não é por moda, a mochila rasgada carregada como a cruz. Pediu para atravessar a cidade, chegava tarde ao exame. Lizst quebrou-o. Olhando pela janela, sendo olhado pelo retrovisor. Quando chegou era um farrapo, sem força para recolher a mochila, o saber, o olhar.
Ele ofereceu a corrida. A supresa deu-lhe uma força qualquer...seria um acredito em si velado?
Ele dirigiu de regresso, odiava campus universitários.
O moço chamou-o pelo retrovisor esbracejando.
Marcha a ré.
Sabe você não devia ser taxista.
Ficou embasbacado.
Nunca tinha pensado que havia opção.
Era meio dia mas regressou a casa.
Desajeitou a camisa, ignorou a madeixa rebelde, o pelo preso no botão e sentou-se na poltrona coçada em silêncio.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Marco António-I

Quem olhasse para ele, todas as manhãs frente ao espelho gasto, compondo sua camisa, seu colarinho, seus punhos, quem o visse sempre ali às 6.49 de cada dia, chovendo ou soleando, com frio ou calor, pensaria que sim, que o homem é mesmo uma criatura de hábitos.
Ele diria que não, que é uma questão de disciplina. Ele não precisa de se ajeitar nesse horário, daquele jeito, dia após dia, é logística pura e dura.
Ele em geral detestava qualquer redução dessa ordem: o homem é um animal de hábitos,  o passarinho que acorda cedo apanha a minhoca e por aí fora...
O estranho é que olhando para ele, qualquer um sentiria que estava diante um estereotipo.
Eu poderia dizer-vos: Sabe aquela clássico taxista, ligeiramente pelado mas com patilhas para compensar? Sabe aquele típico taxista de brinco de diamante na orelha, não aquele de verdade, mas o que se vendia lá nos oitenta às mocinhas...um cubo de plástico barato bem cheio de brilho para ser mais epicentro do olhar que o deus me livre, sabe qual? E todos vocês já o imaginariam tal e qual o podem ver. Camisa de riscas em cores fortes, aberta mostrando o peito farfalhudo, e ocasionalmente o palito que dá o toque ibero-italiano que termina de demonstrar-nos que este homem se chamará Silva, Peres, Lopes com s ou com z. Pode ser que seja italiano...hum...acho que não. Seu estilo é mais de beira mar, um taxista de Benidorm, Albufeira, algo assim entre o autentico e o para turista ver.
Enfim, todas as manhãs 6.49 concertava sua camisa, 6.51 tomava o sei café de filtro, mordia a sua torrada de pão italiano besuntada de queijo creme comprado por atacado e saía, tilintava o seu chaveiro na rua ainda deserta, assobiava como se estivesse num filme a preto e branco.
Chave na fechadura do carro e vamos procurar o primeiro cliente. Assim ia a sua vida. Toda típica, toda rutinária, toda de estereotipozinho.
Excepto numa questão.
Ele gostava mesmo era de música clássica. E opera, ele disfrutava muito da sua opera.
Mozart, Beethoven, Liszt, Händel, Bach até coisas mais recentes como Rufus Wainwright.
Cada passageiro abria a porta, olhava para aquela personagem que educadamente descia o volume para soltar um informal cumprimento e sorria pensando que tinha diante si o esperado, o confiável, embora provocando uma certa antipatia...
Quando ele subia o volume o silêncio instaurava-se, caía pesado como cortina de veludo. 
Que dizer quando o óbvio nos surpreende?
Ele pensava que era a música operando sua magia nos ignorantes, sentia-se um profeta do passado, um che guevara guerilhando contra o funk e satisfeito oferecia ao retrovisor um sorriso como uma marcha triunfal.

domingo, 5 de junho de 2016

warwick

Warwick recebeu mais tarde uma carta. O Homem-sem-nome descobrira o seu refúgio, brincando de Nessie num lago que mais parecia um penico. De um gigante. Mas um penico.
Homem-sem-nome ficara capturado pelo seu encontro. No mesmo dia perdera um pai, ganhara um meio irmão. Ganhara vários se queremos ser precisos. O vai e vem de viúvas e filhos únicos, aproximando-se e distanciando-se da gaivota putrefacta...contudo, só aquele, aquele como ele, sem mãe, sem ser sugado para o movimento da areia movediça dos sentimentos sem sentires.
Tinha havido uma conexão, um doer que em ambos doía. Ficara a sede, que só a um cedia. Warwick oferecera, sem disponibilizar.
Nada disso lhe importava.
Ele queria falar sobre a doença da morte, sem ser com ela.
Ela desaparecera um pouco antes do fim.
Dissera tudo quanto havia a dizer, com o seu corpo, o seu cheiro, as suas pálpebras fechadas numa mistura de confiança plena e desconfiança absoluta...ficara com saudades? Teria que sentir para sentir a falta. A falta não se inscrevera nele. Ficara só a constatação de um espaço.
Um vazio?
Não, um espaço. O espaço branco na cama. O espaço de quem conversa. O espaço de um espelho.
Warwick era um estranho espelho...ele percebera isso. Estranho, roto, descosido...mas um espelho.
Wawick, quer vir jantar cá a casa?
Disse que era uma carta, mas foi imprecisão minha, era um bilhete...um bilhetinho com selo.
No selo nem havia cuspo, era cola, daquela antiga com espuma na ponta, vomitando sempre um pouco nos dedos, oferecendo-se ao plástico da tampa e ali grudando para fascínio de alguma criança.
Para Warwick no entanto aquilo era uma perseguição, uma espionagem, uma confusão de algum tipo que jantar que porra nenhuma!!
Assustado comprou três garrafas de whisky, e abalou nervoso para casa de uns primos de quem não gostava, a quem não visitava jamais e que ninguém no seu perfeito juízo se lembraria que lhe poderiam ser alibi nessa fuga.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

doença do doer

Dois irmãos: um crocodilo, um homem. 
Um nasceu na Escócia, outro na Bretanha.
 O mar de um é diferente do mar do outro.
 Se a tocarmos uma nos gela, a outra nos escalda de frio.

Warwick e o Homem-sem-nome são filhos do mesmo pai. Esse pai era uma gaivota. Voou demasiado rápido para demasiado longe, deixou suas mães com ovos por chocar. Uma pariu com dor e a outra sangrou-se sem se dar conta.
Encontraram-se uma só vez Warwick e o Homem-sem-nome. No funeral do pai.

O pai Gaivota morrera em Gales, era especialista em renunciar a raízes, deixava um ovo e tinha que partir, jogando uma espécie de passa ao outro e não ao mesmo com o destino.
Uma gaivota morta, pensou o Homem-sem-nome, chegava até as suas narinas um gás fétido e adocicado, quase fresco por momentos, quase doce por outros. O cheiro do mar negro, pensou, uma gaivota morta, uma alga de mortalha. O cheiro era tão forte que invadia todos os sentidos, parecia ser visível, ser palpável, ter gosto de horror ser veludo de tristeza. Era a morte sem doença. O seu pai morrera de uma morte diferente da sua, isso era o que ela diria…
O funeral era um carrossel, desfilavam desconhecidos, gastos como cavalos de ferro à beira mar. Entrando e saindo, entrando e saindo.
O Homem-sem-nome chegara cedo porque nunca se atrasava. Warwick chegou tarde porque nunca se apressava. O Homem-sem-nome chegou sem mais, Warwick chegou demais. 
Grande, verde, com cheiro de limo em pedras frias. Entrou rompendo o carrossel que redondo girava em um burburinho, como uma onda que esquecida de si desmaiava na areia, uma viúva e um filho, uma viúva e um filho, um filho e uma viúva…
Entrou espirrando, um espirro e outro e outro. Warwick pisou o Homem-sem-nome.

O seu pé está sobre o meu. E daí? Daí que não pode. Então tire-o. Não posso, porque estou aprisionado pelo seu pé que é mais pesado que o meu. Então se não o pode tirar porque se queixa? Não é assim que deve ser, não é o que vejo, você se pisa, pede pede desculpa e tira o pé. Não sei de nada disso, se eu piso…pisei! Você é bem filho de seu pai. E você? Eu não sei o que é ser filho de meu pai, estou descobrindo agora, com o seu pé quebrando o meu. Tem dor? Tenho a sensação de que algo está como não deveria estar, não sei da dor. Não conhece a dor? Não, e você? Não.


Silenciosos olharam-se. Algo parecido a um reconhecimento. Um espelho descosido, quebrado, estilhaçado, mas se tocassem com sua mão ou sua pata rugosa…não produzia corte, não ardia, não cedia.
O corte já tinha sido, em algum lugar.

Você trouxe a sua mãe? Não, e você? Não, quer um copo?

Warwick mostrou a sua garrafa de whisky, escondida na sua saia de lã áspera com espaçados quadrados.
Malte antigo do ano que descasquei.
O Homem-sem-nome estendeu o copo, mas Warwick apontou com a garrafa as penas do pai.
Aquele salafrário nunca me conheceu, só venho para o conhecer hoje. 
O Homem-sem-nome seguia com seu copo a garrafa de malte, ansiava pelo cheiro agradável da bebida, supondo que ela afogaria todos os outros.

Eu vim para saber da morte, disse por fim baixinho, descendo o copo, desistindo do brinde com seu meio irmão, ela diz que eu tenho a doença da morte…Que estupidez é essa? A doença da morte é não amar nunca, não desejar, morrer sem ter uma vida que desague no morrer…Você dormiu com ela? Sim…Ainda assim andam com essas conversas da treta?

Homem-sem-nome não soube que dizer.
Warwick tomou o resto da sua garrada e mostrou-lhe como a sua cauda ondulava até à gaivota.
Podia-te comer, morder, estilhaçar…Ouviu o Homem-sem-nome.
Warwick saiu rompendo o carrossel, sem se despedir.


Tem a doença da morte, a doença de doer, o homem-sem-nome pensou.

Exercício para curso Noemi Jaffe na casa do saber